Monday, May 25, 2015

No coração dos Açores

Pe. José Luís de Fraga, em retrato por Victor Câmara.
Com Maria Antónia Fraga no coração dos Açores
 
Entre França e Aragão é nome mais que belo para um trabalho musical como este que agora é editado com sabor a fruta madura da voz única e irrepetível de Maria Antónia Fraga. Os Açores voam mais alto e perdem-se na planura do tempo com estes sons que nos acordam para a beleza passada que a tecnologia do presente projecta para o futuro.
A voz descanta e encanta. Miguel Pimentel empresta beleza ao acompanhamento, na sonoridade da viola, com uma mestria impregnada de classicismo e simplicidade que é quase como que uma sombra dando relevo à luz.
Donzela Guerreira é mais do que a menina da lenda cantada nos Açores e recolhida nos romanceiros populares; é mais do que menina que se veste de homem para poder participar na guerra, lá para os confins do século XVI. Donzela Guerreira é a própria imagem de Maria Antónia Fraga, mulher açoriana temperada pela ocidental força florense e amadurecida na grandeza destes mundos africanos, onde viveu e aprendeu a abrir o coração para este lado de cá, ilhas atlânticas com sonhos de atlântidas…
Ao sol de Luanda sentiu o sabor da sombra da saudade, viveu os terreiros onde palpitava uma chamarrita do meio, ou sonhava com Meus Amores, dois de manhã e dois à tarde
Amadureceu e hoje surge como senhora da música, que não tem medo da palavra folclorista e que se assume como genuína e destemida intérprete do mais puro que há no folclore açoriano.
Não precisamos sequer de falar em todos os seus anteriores discos. Um deles, o terceiro que editou, ainda em vinil, com a etiqueta da Polygram, nos distantes anos oitenta, tocou-me profundamente porque acompanhei todos os passos da sua edição, por motivos profissionais. E foi daí que veio esta amizade e este respeito por esta grande mulher que se chama Maria Antónia e que carrega o nome de um dos nossos maiores investigadores musicais de sempre, seu tio, o Padre José Luís de Fraga, cujas recolhas são manancial quase inesgotável para quem quiser conhecer o folclore açoriano. O Padre Fraga, como carinhosamente o tratava, foi uma das referências da minha juventude e mais tarde em Maria Antónia, senti como que uma continuidade de tão importante presença na minha vida.
Poderia dizer isto em carta escrita, porque há sempre na música açoriana uma carta escrita que não temos por quem mandar. Mas digo-o aqui, sentindo aquela sensação de quem entra num magnífico pomar e se depara com árvores carregadas de sumarentos frutos maduros em que mal nos atrevemos a tocar. Assim é a voz de Maria Antónia Fraga que depois de um longo interregno, surge, inesperadamente, bela e timbrada, simples como trinado de ave, fresca como água de ribeira, daquelas que debruam as escarpas da ilha das Flores, mas ao mesmo tempo segura e sonora, como se o palco da vida a tivesse feito senhora de muitas viagens e de outras músicas.
Este Entre França e Aragão, contrariamente ao que Maria Antónia diz, não é um canto de cisne, é uma feliz obrigação de continuar, porque sabe a pouco. Ouve-se em poucos minutos e ficamos com a sensação que há sempre tanto para cantar. Há mesmo ocasiões em que apetece não avançar… Retroceder, ouvir de novo, é talvez o melhor que um artista pode escutar de um trabalho seu. E eu senti-o e digo-o aqui… O Fado Maria da Luz, uma magnífica recolha da própria Maria Antónia, em São Jorge, é um desses casos. Prende-nos a música, e cativa-nos a letra que nos transporta ao mais íntimo das lembranças: Quando vejo uma velhinha, com as saias a arrastar, lembra-me a minha mãezinha no seu modesto trajar.
Já o referi, mas repito. Os acompanhamentos de Miguel Pimentel, que não precisa de qualquer apresentação pelo muito que tem dado à divulgação do mais emblemático instrumento musical da nossa terra, valorizam o trabalho deste disco de uma maneira quase sublime, essencialmente pelo equilíbrio e pela força que conferem à palavra cantada, como se fosse um diálogo de tempo e de modo, que se repete em ecos inesquecíveis e duradouros.
Maria Antónia Fraga é professora, toda a vida… Como ela própria se classifica, reformada pela graça de Deus, continua a ensinar e melhor do que tudo, continua a ter alunos. Os ensinamentos que colherão todos aqueles que lerem a brochura que acompanha este trabalho musical são disto prova concreta. O folclore, de qualquer lugar e de qualquer época é um dos maiores compêndios de história e cultura sobre um povo.
Nos Açores não fugimos à regra. Pena é que muitas vezes a tentação das adaptações para exibição tire a genuinidade e estrague a beleza original das canções. Em Maria Antónia Fraga nota-se esta preocupação de “regresso às origens”, com a convicção de que a água da nascente é sempre a mais pura e cristalina.
A música e o folclore dos Açores ficam mais ricos com este trabalho, mas cresce a dívida de gratidão por tudo quanto a cantora tem feito por estas ilhas, desde que aqui regressou, nos anos setenta, logo após a revolução dos Cravos, quando muito era preciso reconstruir e preservar.
Entre França e Aragão é o coroar de uma carreira, mas é acima de tudo o testemunho de que há valores e entusiasmos que ultrapassam o tempo.
Merece ser ouvido e acima de tudo divulgado, porque a ilha sente-se mesmo que a nossa casa seja a única no deserto de todas as ausências. Com o carinho do cabeçal onde me deito e sinto que tanta falta me têm feito os mimos de minha mãe, porque, como no Fado da Meia Noite… nem só de alegre se canta, nem só de triste se chora.
Descobrir cada uma destas frases, entrar com elas na alma do tempo e trazê-las junto ao peito, é motivo mais que suficiente para esta palavra de gratidão a Maria Antónia Fraga, com Miguel Pimentel e todos os que fizeram este disco. Obrigado… e bom passeio musical Entre França e Aragão, no coração dos Açores!
 
Santos Narciso
Jornalista
 


Saturday, May 09, 2015

"Entre França e Aragão"

 
(MAE canta no Nordeste para o Sr. Presidente da República, a convite do Dr. José Carlos Carreiro, sendo acompanhada à viola por Miguel Pimentel)

“Entre França e Aragão”

Sempre vi no trabalho de Maria Antónia Esteves (MAE) uma mistura ente questões profissionais, de ciência pura – uma excelente docente universitária de Física e Química, e também do ensino secundário – e a artista com preocupações estéticas, na procura da mais pura expressão da música tradicional açoriana.

Este seu novo cd partilha valores musicais do nosso património comum dos Açores, sendo MAE, sem dúvida, na actualidade, a melhor escolha para se escrever sobre a identidade cultural açoriana na área da etnomusicologia, pesquisa, recolha, divulgação e recriação dos valores musicais do povo açoriano.

“Entre França e Aragão“ é o seu quinto trabalho editado, depois de “Açores” (45 r.p.m.),  “Manjericão da Serra” (LP), “Canto do Prisioneiro” (LP) e “Com o Rosto a Este Vento” (cd), constituindo mais uma demonstração da sua imprescindibilidade na musicologia açoriana. A viola da terra, magistralmente executada por Miguel Pimentel, de novo dá expressão e alma ao trabalho, acentua a estrutura musical dos temas, moldando-se a cada sílaba cantada por MAE.

O cd, com uma excelente qualidade sonora, mergulha a fundo nas raízes e na interculturalidade açoriana da diáspora, de que é exemplo o estado brasileiro de Santa Catarina, povoado por casais açorianos já lá vão mais de 250 anos, e traz à memória outros trabalhos da sua carreira musical, rica de actuações, entre as quais recordo com muito agrado a actuação na Praça do Município desta Vila, durante a única visita de um Chefe de Estado ao concelho do Nordeste em toda a sua história, expressando o sentir deste povo ao mais alto magistrado da Nação, e comitiva.

“Entre França e Aragão” é, assim, mais uma manifestação da vitalidade de uma das mais importantes musicólogas do nosso tempo, obra de alguém que conhece, porque investigou a fundo, a cultura musical açoriana, com uma voz e uma qualidade apuradas.

De facto, MAE não é uma voz qualquer. É a voz genuína do povo das ilhas onde nascemos, a voz da pátria açoriana onde gostamos de viver.

Saudemos, pois, mais esta sua viagem às ilhas de bruma e de sonho.

 
José Carlos B.Carreiro

(Ex Presidente da Câmara Municipal do Nordeste)
 


Saturday, May 02, 2015

DOS AÇORES AO BRASIL, POR ENTRE FRANÇA E ARAGÃO: VIAGENS DE UMA DONZELA GUERREIRA


 
 
DOS AÇORES AO BRASIL, POR ENTRE FRANÇA E ARAGÃO:
                                        VIAGENS DE UMA DONZELA GUERREIRA

Pela Profª Drª Margarida Sá Nogueira Lalanda
 
«Eu vou cantar agora “O Meu Bem” de outra maneira; mas é sempre “O Meu Bem”, à mesma…»: nestas sábias palavras de um intérprete jorgense de música tradicional, recolhidas por Maria Antónia de Fraga Esteves e escolhidas como intróito à peça nº7 deste seu mais recente álbum, está toda uma síntese do percurso desta musicóloga açoriana. “O seu bem” como estudiosa, seleccionadora e divulgadora é a identidade musical dos Açores, as raízes históricas dos temas tradicionais e das suas versões em geografias diversas. Com espírito de missão vai já na quarta década de entrega a um completo trabalho de investigação, partindo de recolhas próprias e de outros (com destaque espe­cial para o Padre José Luís de Fraga, seu tio paterno e padrinho) e sempre com grande exigência de rigor também na pronúncia das palavras, na sua etimologia, na busca das influências e afinidades musicais relativamente a outros povos marítimos e migrantes, na determinação do que é genuíno em tal recons­ti­tuição do passado histórico. A missão que a si própria se impôs é de cariz pedagógico, em plena coerência com a sua atividade de professora: dar a conhecer dentro e fora do arquipélago a qualidade e a variedade do património musical açoriano, muito mais rico do que aquilo que habitualmente é divulgado. E para tal alia à sua vertente de investigadora a sua condição de intérprete vocal, além de editora por conta própria, dos trabalhos discográficos que tornam público este duplo labor.

«Entre França e Aragão» é o 5º título da produção musical de Maria Antónia de Fraga Esteves. Para bem entender a sua inserção no projecto como um todo e as razões da escolha de um nome aparentemente nada açoriano, é importante considerar o percurso desta estudiosa-cantora e o mundo que nos desvenda via “internet” no seu “blog” (http://mariaantoniaesteves.blogspot.pt/). Aqui se elucida que «foi por diversas vezes convidada para dar cursos, ou colaborar com cursos em que o folclore açoriano fosse importante como disciplina», onde «pôde transmitir, a grupos por vezes bastante grandes de alunos, tanto locais como da diáspora, a sua visão do folclore musical açoriano e da forma como deve em seu entender ser estudado, ou seja comparativamente _não só entre ilhas, como também entre ilhas e continente português, Europa e Américas. Outra impor­tante consequência foi a transmissão aos jovens da necessidade de se­rem levadas a efeito mais recolhas, tendo sido conseguido, por vezes, pôr grupos de alunos a fazer tra­balho de campo.» É, por conseguinte, da pesquisa etnográfica que resul­ta a comparação entre textos e músicas diferentes nas proveniências geográficas mas fruto de vivências e imaginários comuns _e de que, como se lê neste mesmo libreto, «a história da jovem que vai combater na guerra fazendo-se passar por homem constitui, com as suas inúmeras variantes, um dos romances tradicionais mais populares». E eis como a exígua distância real e pirenaica “entre França e Aragão” foi transformada pelas culturas populares num imenso contínuo territorial e marítimo ligando a Europa do Sul à América do Sul, e natural­mente com presença marcante na centralidade atlântica das nove ilhas dos Açores…

A unidade entre o presente disco e os que o antecederam é inegável, porque radica na clara explicitação, acima feita, dos objectivos da sua criadora. O início de todo este projecto de divulgação pedagógica musical dá-se em 1981, com a publicação de «Açores», um disco em vinil no formato mais pequeno, 45 rotações por minuto, com acom­panhamento de viola (de seis cordas, entenda-se) e com duas canções recolhidas na ilha das Flores (uma pelo pai, a outra pelo tio de Maria Antónia): «Tinha um Rei uma Filha», no lado A, e «Barquinha Feiticeira», no lado B. Pouco tempo depois, em 1984, o material estudado permite já a edição de um disco grande, um LP (de 33 rotações por minuto), «Manjericão da Serra», com dez temas (oito novos, e recupe­ração dos dois de 1981), tocados em «viola de seis cordas» e agora também em «viola de arame», ou seja, na denominada «viola da terra» ou «açoriana». A este propósito regista-se no dito “blog”: «“Manjericão da Serra” marcou uma mudança na actividade de divulgação de Maria Antónia Esteves, no sentido de –even­tualmente sem deixar de incluir um ou outro instrumento, quando necessário_ utilizar fundamentalmente e como instrumento principal a viola regional, o que foi possibilitado pela excepcional qualidade do tocador Miguel de Braga Pimentel.» Tal entusiasmo é manifesto quer em pormenores carregados de simbolismo _como na identificação do autor da fotografia, que «fez a capa por ter com­preendido os Açores»_ quer na tarefa que a musicóloga se impõe doravante: divulgar e valorizar «a viola azorica, tão endémica dos Açores como é o cedro do mato», e que então se encontra bastante desprezada local­mente. Justamente por isso, a imagem da capa do seu 3º disco em vinil, formato LP, e publicado também em cassette audio, em 1988, «Canto do Prisioneiro», merece de um amigo um comentário em jeito de sub-título: "a viola salva das águas" ou “a apoteose à viola açoriana”. E a construção da afirmação desta sua protegida passa igualmente pelo modo de indicar os instrumentos participantes: ela, a raínha, que não entrara no «Açores» e que no «Manjericão da Serra» era «viola de arame», apresenta agora o seu nome completo, «viola de arame açoriana»; a seu lado, pontualmente e com grande dignidade, o rei dos instrumentos de corda, o violino; e a outra, designada «viola de seis cordas (violão)» em 1984 e, no primeiro disco, apenas «viola» (por ser a única aí usada), deixa de ter direito a partilhar com ela esse nome e é identificada exclusivamente como «violão»… «Canto do Prisioneiro» revela ter um duplo sentido, como a sua criadora tanto gosta: para além de ser o título dum dos nove temas do disco, todos eles novos, é claramente a voz da “viola de arame” que finalmente se liberta das muitas prisões e preconceitos que a tinham agrilhoado até esse momento.

Em 2005 surge o 1º CD de Maria Antónia de Fraga Esteves, «Com o Rosto a Este Vento» (expressão do cronista Gaspar Frutuoso para designar o Nordeste, com a qual a folclo­rista pretende homenagear a vila micaelense onde reside). O «violão» acompa­nha aí a «viola da terra» (expressão tornada corrente entretanto), sem outras cordas: os luga­res e os méritos de ambos já se encontram bem definidos e aceites. Embora nenhum dos temas do 3º disco seja retomado (ao contrário de vários do 2º e de ambos os do 1º), o espírito marítimo daquele (com especial destaque para «Sou Marinheiro», de que foi feito um telefilme, «Rema», e «Nau Catrineta», uma associação voluntária às comemo­rações dos cinco séculos de Descobrimentos portugueses) prolonga-se e desenvolve-se substan­cialmente neste. Com efeito, para além das tocatas tradicionais açorianas, o que distingue o CD é a temática do mar e da baleação, e é, pela primeira vez, a inclusão de canções originárias de outros países e interpretadas em inglês ou em francês, bem como de peças menos conhecidas ou com influências africanas e brasileiras. Bem sucedida na missão de dignificar a viola regional, a musicóloga já pode agora concentrar os seus esforços na outra dimensão do seu projecto: a comparação com o folclore musical de outros espaços.

Mar, viagem e mudança são indissociáveis, e é essa a razão para o surgimento em 2014 da continuação natural do disco publicado quase dez anos antes. A ligação entre ambos os CDs é ainda reforçada pela escolha de «Um Marinheiro» para a abertura do mais recente, num prolongamento das canções de trabalho de mar do primeiro, e pelo facto de a última peça de «Com o Rosto a Este Vento» ter sido, tal como a que dá o nome ao novo trabalho, relativa a um soldado e à guerra. Em «Entre França e Aragão», este 2º CD da autora (cujo título, atrás explicado, dá continuidade à internacio­na­lização da sua pes­quisa etnográfica), está documentada, como se anuncia no “blog”, «a relação entre as músicas folclóricas açorianas e as suas con­géneres do Sul do Brasil (Rio Grande do Sul e Santa Catarina, sobretudo), incluindo dois excelentes exemplos (Ratoeira e Terno de Reis) de temas que, embora de ori­gem açoria­na, segundo estudiosos do folclore bra­sileiro, foram recolhidos nessas regiões.»

É muito interessante notar que a música “principal”, «Donzela Guerreira», não é a primeira; a sua colocação em 5º lugar (nesta 5ª produção discográfica da autora…), aconchegada e salvaguardada do exterior por quatro outras a precederem-na e mais sete que se lhe seguem, faz dela o verdadeiro coração deste CD. E o mesmo se aplica à capa, reprodução de parte dum quadro pintado entre o último trabalho da musicóloga editado à moda dos últimos anos do século XX e o seu primeiro já nas novas tecnologias: a viola, cerne desta identidade musical açoriana, encon­tra-se amorosa­mente protegida pelas mãos e pelo corpo da sua pesquisadora e valori­zadora, e torna-se no rosto visível do coração que por trás dela vive. Tal protecção é tanto mais de salientar quanto o instrumento de eleição de Maria Antónia de Fraga Esteves para interpretar o património musical que estuda não é a viola nem qualquer outro externo a si, mas é a sua própria voz __cujos cambiantes têm mudado quase de disco para disco, mas mantendo sempre um perfeito controlo e equilíbrio entre harmonia e potência, revelador da força interior que lhe tem sido necessária para persistir na missão cultural que para si traçou, como «Donzela Guerreira» que é.

A mudança retratada neste trabalho é, ainda mais do que a de local, a de substituição de um passado agradável por um presente de desolação e saudade, como em «Cabeçal onde me deito», ou de culpa, onde o expoente máximo é «Fado Maria da Luz», ou mesmo de privação e sobrevivência em ambiente tão pouco acolhedor que, como se carpe o moço em «Um Marinheiro», em vez da primeira refeição do dia é servida a ordem de execução dum trabalho tão duro quanto dar alcatrão num navio. Ora não é precisa­mente esta a essência da emigração, e em concreto da que no século XVIII se deu dos Açores para o povoamento e a defesa do Sul do Brasil?... E o carácter penoso do destino não é inerente à própria condição humana desde a sua criação, como se diz no fado (palavra que já de si o significa) «Maria da Luz» («quando Deus criou a rosa/ num paraíso encan­tado/ caiu uma e desfolhou-se/ e assim nasceu o fado»)?...

Existem diversas forças agregadoras das várias componentes deste disco, que adquirem matizes diferentes consoante a ordem por que são ouvidas (experiência que vivamente se recomenda). Entre algumas tocatas há laços de complementaridade meló­dica ou temática; a título de exemplo, atente-se ao que sucede quanto a múltiplas facetas do ser-se mulher. Temos aqui a jovem que, na qualidade de filha determinada e na inexis­tência de outro varão em casa, prescinde tem­porariamente da sua feminilidade para ir substituir o pai e se tornar numa donzela guerrei­ra; e repare-se que, embora o seu primeiro objectivo seja auxiliar o seu velho pai, o segun­do é a vitória, não uma mera presença («quero ir ganhar a guerra entre França e Aragão»). Igualmente decidida, mas neste caso para uma prática destrutiva e condenada, é a «Dona Maria da Luz/ que seu marido matou», situação ainda mais arrepiante pelo facto de se começar por trazer à memória uma «avozinha» humilde e desprotegida… Entre os dois extremos abundam os quoti­dianos mais comuns, também eles dominados pelos afectos: a instabilidade presente em «Lindos Amores» dá lugar à feliz plenitude em «O Meu Bem», mas pode transformar-se, como na «Ratoeira», na dor pela perca do ente amado (que deixou de estar disponível: «na roda já não está/ quem o meu coração que­ria»), dor agravada pela certeza de que «hei-de amar-te até morrer». O sentimento de melancolia amorosa atinge o seu máximo no «Fado da Meia Noite», com uma vivência menos comum: «nem só de alegre se canta, nem só de triste se chora: de alegria chorei já, de tristeza canto agora». Ora sendo este o último trecho do CD «Entre França e Aragão», será abusivo pensar que o próximo trabalho de Maria Antónia de Fraga Esteves talvez se debruce sobre as raízes e os frutos internacionais dos lamentos açorianos de amor?... Venha ou não a ser esta a temática, de certeza que o saborearemos com o mesmo prazer que a sua obra nos tem proporcionado desde 1981!

 

Margarida Sá Nogueira Lalanda

Junho 2014
Na foto: MAE com seus pais (e já a viola...) em Angola, cidade de Carmona (Uíge). 1967.