Wednesday, April 22, 2015

Apresentação de “Entre França e Aragão” pela autora (do libreto do cd)


 
 
Desde sempre houve música em minha casa. Meu pai cantava, meu tio cantava, minha tia não cantava, mas era professora de piano, minhas primas cantavam, até minha avó e minha mãe também cantavam. Muitas foram as cantigas que ouvi cantar, por vezes retiradas de velhas folhas pautadas e manuscritas, outras de livros ainda mais velhos. Muitas eram (hoje sei-o) de proveniência erudita, árias de óperas conhecidas, por exemplo (lá em casa havia uma preferência especial por Donizetti; eu própria cheguei a cantar trechos de L’ Elisir d’amore, por impossível que isso hoje me pareça…) mas outras eram cantos do povo que meu tio e meu pai ou conheciam do seu próprio passado, ou pesquisavam, recolhiam e registavam. Entre todas uma agradava-me especialmente, talvez porque no dia em que primeiro a ouvi meu pai me sentara no seu colo, enquanto a cantava como se fosse um embalo. A suave cadência, e, quem sabe, a vida corajosa da Barquinha Feiticeira, que eu logo imaginei como uma sereia diferente - aquela que enfrentava os perigos sem nome do mar para salvar os marinheiros perdidos, em vez de os arrastar consigo para o abismo, como faziam as suas perversas irmãs, deixaram marca indelével no meu íntimo. Não se sabia quem escrevera as palavras nem quem compusera a linda melodia, mas de ambas o povo se tinha apropriado, o que transformava a “barquinha” numa peça folclórica – o que só muito mais tarde vim a perceber. Para mim, então, era apenas a linda cantiga...que eu pedia a meu pai para cantar outra vez.

 
Os anos passaram. Aprendi música, e a cantar, com meu pai; aprendi a admirar meu tio, notável folclorista. Estudei as suas recolhas, e as recolhas de outros. Recolhi eu própria. Das músicas folclóricas dos Açores passei às do Continente português, das portuguesas às europeias. Das açorianas, de novo, às americanas, africanas e brasileiras. Um dia entendi que era preciso e urgente divulgar.  E é isso que faço desde então…

 
…..

 
“Entre França e Aragão” é o quinto título da minha diminuta discografia, que em 1981 se iniciou com o 45 r.p.m. “Açores”, que integrava  precisamente a Barquinha Feiticeira de que falei atrás, e um outro romance, Tinha um Rei uma Filha – e desta forma tão modesta comecei a apresentar ao mundo um folclore que poucos conheciam, e que alguns - talvez condicionados pelo repisar constante das poucas peças que nos habituámos a considerar como “folclore” - até sentiram dificuldade em encarar como tal. Em 1984 e 1988 surgiram os LPs “Manjericão da Serra” e “Canto do Prisioneiro”, em que pude continuar a divulgar a minha própria forma de ver e sentir a música tradicional da terra onde nasci, no primeiro de ambos já incluindo o instrumento açoriano por excelência, a viola de arame açoriana ou viola da terra,   que nunca mais se apartaria das minhas realizações.

E só em 2005 surgiu o primeiro cd, “Com o Rosto a Este Vento”, em que abordei a temática dos nossos cantos marítimos, que tão esquecidos foram por muitos dos nossos recolectores, sublinhando as relações existentes entre os mesmos e cantos similares de outros  povos.

Surge agora o presente trabalho, também editado em cd, onde apresento dois temas folclóricos brasileiros, do estado de Santa Catarina, relacionados com o corpo tradicional açoriano de onde terão derivado, além de chamar a atenção, mais uma vez, para os recolectores do passado e apresentar recolhas de minha própria autoria.

Na simplicidade dos acompanhamentos instrumentais, onde a viola reina desta vez como única senhora, pretendo recriar, até certo ponto, a ambiência dos serões de antanho, em que perante as mãos habilidosas - muito embora calejadas - do tocador, uma voz se levantava, mais uma vez repetindo as palavras ouvidas aos avós.

 
Não o fiz sozinha, porém. Tive companhia nesta jornada, que se acaba por ser sobremaneira gratificante, não deixa de incluir troços de caminho íngremes e ásperos. Miguel Pimentel, “o tangedor” micaelense, muito provavelmente o melhor tocador tradicional de viola ainda vivo e actuante, que me mostrou infinita disponibilidade, perdendo inúmeras horas do seu merecido descanso e desviando outras tantas dos seus restantes projectos na criação dos arranjos, na repetição das tocatas, no incentivo sempre presente nas horas em que o desânimo se instala.  Sua amável esposa, D. Conceição, sempre disposta a elevar o moral dos cansados intérpretes com um delicioso chazinho e saborosos biscoitos, de holísticos efeitos. Eduardo Botelho, que colocou o melhor da sua experiência ao serviço de uma forma de encarar a música açoriana que, na sua simplicidade, não é talvez a mais fácil de registar em termos sonoros, e que mesmo com o apoio da sofisticada tecnologia de que dispõe muito exigiu da sua sensibilidade artística.

 
De várias (muitas!) fontes recebi estímulo e incitamento. Na impossibilidade de as listar por completo, vou referir neste momento três bons amigos meus: José Carlos Carreiro, um das personalidades que desde o princípio mais valorizou o minha abordagem da música tradicional açoriana;  Margarida Lalanda, cujas palavras foram determinantes na minha decisão de gravar de novo, e Santos Narciso, que mesmo atormentado pela doença, aceitou escrever sobre um percurso em cujos primórdios também participou – e as estes três ilustres agradeço não só os incentivos, como também os textos que a generosidade lhes ditou e que integram este livrinho.

 
A todos aqueles que aceitaram a minha presença, e em suas casas me acolheram mais os gravadores que foram evoluindo, dos velhos modelos de bobinas, que ainda usei, passando pelos de áudio-cassetes até às miniaturas digitais da actualidade, e se dispuseram a comigo partilhar os seus valiosos saberes, respondendo com bonomia às minhas perguntas e ainda (quantas vezes!) sendo os primeiros a me agradecer - sou eu que agradeço sensibilizada, e sendo tantos, entre eles individualizo o bondoso senhor José Inácio Freitas, de Santo Amaro, S. Jorge, tocador, mandador de balho, e cantor de extraordinária suavidade, a quem devo as duas belas peças jorgenses que integram este trabalho. Ao saudoso maestro Hélio Teixeira da Rosa, bem como ao seu amigo e associado Osvaldo Ferreira de Melo, não posso deixar de agradecer os excelentes temas do folclore catarinense que me deram a conhecer, e ainda, ao primeiro, a bondade com que me recomendava “que cantasse todos os dias” – mesmo naqueles em não parecia possível reunir energias para tão excessivo esforço.

 
Agradeço aos meus filhos, que ao longo dos anos e dos quilómetros de distância para onde a vida os levou nunca deixaram de me motivar, na ânsia de mais um trabalho meu, que daria continuidade aos que embalaram as suas infâncias felizes. Agradeço ao padre José Luís de Fraga, meu tio e padrinho, com quem aprendi a forma, não de deter, mas sim de contornar, de algum modo, o impacto que o temível século vinte teria nas tradições populares.  E, acima de todos! agradeço ao meu pai, que há tantos anos me apresentou a música, e as músicas pelas quais me apaixonei sem remédio, e que acabariam por se tornar numa parte importante da minha vida - para sempre. A ele tudo devo, e ainda mais isso.

 
Que “Entre França e Aragão”, onde de facto foram travadas e, graças a Deus, vencidas muitas batalhas, possa continuar o caminho iniciado e percorrido pelos seus antecessores, no sentido de fomentar o gosto do ouvinte por aquilo que terá sido a música das ilhas dos Açores num tempo que já não é o presente. E se a ingénua pergunta que há dias me fazia uma amiga alemã, que obviamente não conhece o nosso actual sistema educativo - as “tuas” músicas são ensinadas nas escolas, não é verdade? se revelar tão profética, quanto ao porvir, quão desajustada é em relação ao presente, não poderei ficar mais feliz, porque essa seria a melhor forma de as transportar para o futuro.

 
E pronto. “Da obra ousada é minha a parte feita”; o por fazer já se sabe com quem é…

 

Nordeste, Julho de 2014

Maria Antónia T. de Fraga (Esteves)