Saturday, May 02, 2015

DOS AÇORES AO BRASIL, POR ENTRE FRANÇA E ARAGÃO: VIAGENS DE UMA DONZELA GUERREIRA


 
 
DOS AÇORES AO BRASIL, POR ENTRE FRANÇA E ARAGÃO:
                                        VIAGENS DE UMA DONZELA GUERREIRA

Pela Profª Drª Margarida Sá Nogueira Lalanda
 
«Eu vou cantar agora “O Meu Bem” de outra maneira; mas é sempre “O Meu Bem”, à mesma…»: nestas sábias palavras de um intérprete jorgense de música tradicional, recolhidas por Maria Antónia de Fraga Esteves e escolhidas como intróito à peça nº7 deste seu mais recente álbum, está toda uma síntese do percurso desta musicóloga açoriana. “O seu bem” como estudiosa, seleccionadora e divulgadora é a identidade musical dos Açores, as raízes históricas dos temas tradicionais e das suas versões em geografias diversas. Com espírito de missão vai já na quarta década de entrega a um completo trabalho de investigação, partindo de recolhas próprias e de outros (com destaque espe­cial para o Padre José Luís de Fraga, seu tio paterno e padrinho) e sempre com grande exigência de rigor também na pronúncia das palavras, na sua etimologia, na busca das influências e afinidades musicais relativamente a outros povos marítimos e migrantes, na determinação do que é genuíno em tal recons­ti­tuição do passado histórico. A missão que a si própria se impôs é de cariz pedagógico, em plena coerência com a sua atividade de professora: dar a conhecer dentro e fora do arquipélago a qualidade e a variedade do património musical açoriano, muito mais rico do que aquilo que habitualmente é divulgado. E para tal alia à sua vertente de investigadora a sua condição de intérprete vocal, além de editora por conta própria, dos trabalhos discográficos que tornam público este duplo labor.

«Entre França e Aragão» é o 5º título da produção musical de Maria Antónia de Fraga Esteves. Para bem entender a sua inserção no projecto como um todo e as razões da escolha de um nome aparentemente nada açoriano, é importante considerar o percurso desta estudiosa-cantora e o mundo que nos desvenda via “internet” no seu “blog” (http://mariaantoniaesteves.blogspot.pt/). Aqui se elucida que «foi por diversas vezes convidada para dar cursos, ou colaborar com cursos em que o folclore açoriano fosse importante como disciplina», onde «pôde transmitir, a grupos por vezes bastante grandes de alunos, tanto locais como da diáspora, a sua visão do folclore musical açoriano e da forma como deve em seu entender ser estudado, ou seja comparativamente _não só entre ilhas, como também entre ilhas e continente português, Europa e Américas. Outra impor­tante consequência foi a transmissão aos jovens da necessidade de se­rem levadas a efeito mais recolhas, tendo sido conseguido, por vezes, pôr grupos de alunos a fazer tra­balho de campo.» É, por conseguinte, da pesquisa etnográfica que resul­ta a comparação entre textos e músicas diferentes nas proveniências geográficas mas fruto de vivências e imaginários comuns _e de que, como se lê neste mesmo libreto, «a história da jovem que vai combater na guerra fazendo-se passar por homem constitui, com as suas inúmeras variantes, um dos romances tradicionais mais populares». E eis como a exígua distância real e pirenaica “entre França e Aragão” foi transformada pelas culturas populares num imenso contínuo territorial e marítimo ligando a Europa do Sul à América do Sul, e natural­mente com presença marcante na centralidade atlântica das nove ilhas dos Açores…

A unidade entre o presente disco e os que o antecederam é inegável, porque radica na clara explicitação, acima feita, dos objectivos da sua criadora. O início de todo este projecto de divulgação pedagógica musical dá-se em 1981, com a publicação de «Açores», um disco em vinil no formato mais pequeno, 45 rotações por minuto, com acom­panhamento de viola (de seis cordas, entenda-se) e com duas canções recolhidas na ilha das Flores (uma pelo pai, a outra pelo tio de Maria Antónia): «Tinha um Rei uma Filha», no lado A, e «Barquinha Feiticeira», no lado B. Pouco tempo depois, em 1984, o material estudado permite já a edição de um disco grande, um LP (de 33 rotações por minuto), «Manjericão da Serra», com dez temas (oito novos, e recupe­ração dos dois de 1981), tocados em «viola de seis cordas» e agora também em «viola de arame», ou seja, na denominada «viola da terra» ou «açoriana». A este propósito regista-se no dito “blog”: «“Manjericão da Serra” marcou uma mudança na actividade de divulgação de Maria Antónia Esteves, no sentido de –even­tualmente sem deixar de incluir um ou outro instrumento, quando necessário_ utilizar fundamentalmente e como instrumento principal a viola regional, o que foi possibilitado pela excepcional qualidade do tocador Miguel de Braga Pimentel.» Tal entusiasmo é manifesto quer em pormenores carregados de simbolismo _como na identificação do autor da fotografia, que «fez a capa por ter com­preendido os Açores»_ quer na tarefa que a musicóloga se impõe doravante: divulgar e valorizar «a viola azorica, tão endémica dos Açores como é o cedro do mato», e que então se encontra bastante desprezada local­mente. Justamente por isso, a imagem da capa do seu 3º disco em vinil, formato LP, e publicado também em cassette audio, em 1988, «Canto do Prisioneiro», merece de um amigo um comentário em jeito de sub-título: "a viola salva das águas" ou “a apoteose à viola açoriana”. E a construção da afirmação desta sua protegida passa igualmente pelo modo de indicar os instrumentos participantes: ela, a raínha, que não entrara no «Açores» e que no «Manjericão da Serra» era «viola de arame», apresenta agora o seu nome completo, «viola de arame açoriana»; a seu lado, pontualmente e com grande dignidade, o rei dos instrumentos de corda, o violino; e a outra, designada «viola de seis cordas (violão)» em 1984 e, no primeiro disco, apenas «viola» (por ser a única aí usada), deixa de ter direito a partilhar com ela esse nome e é identificada exclusivamente como «violão»… «Canto do Prisioneiro» revela ter um duplo sentido, como a sua criadora tanto gosta: para além de ser o título dum dos nove temas do disco, todos eles novos, é claramente a voz da “viola de arame” que finalmente se liberta das muitas prisões e preconceitos que a tinham agrilhoado até esse momento.

Em 2005 surge o 1º CD de Maria Antónia de Fraga Esteves, «Com o Rosto a Este Vento» (expressão do cronista Gaspar Frutuoso para designar o Nordeste, com a qual a folclo­rista pretende homenagear a vila micaelense onde reside). O «violão» acompa­nha aí a «viola da terra» (expressão tornada corrente entretanto), sem outras cordas: os luga­res e os méritos de ambos já se encontram bem definidos e aceites. Embora nenhum dos temas do 3º disco seja retomado (ao contrário de vários do 2º e de ambos os do 1º), o espírito marítimo daquele (com especial destaque para «Sou Marinheiro», de que foi feito um telefilme, «Rema», e «Nau Catrineta», uma associação voluntária às comemo­rações dos cinco séculos de Descobrimentos portugueses) prolonga-se e desenvolve-se substan­cialmente neste. Com efeito, para além das tocatas tradicionais açorianas, o que distingue o CD é a temática do mar e da baleação, e é, pela primeira vez, a inclusão de canções originárias de outros países e interpretadas em inglês ou em francês, bem como de peças menos conhecidas ou com influências africanas e brasileiras. Bem sucedida na missão de dignificar a viola regional, a musicóloga já pode agora concentrar os seus esforços na outra dimensão do seu projecto: a comparação com o folclore musical de outros espaços.

Mar, viagem e mudança são indissociáveis, e é essa a razão para o surgimento em 2014 da continuação natural do disco publicado quase dez anos antes. A ligação entre ambos os CDs é ainda reforçada pela escolha de «Um Marinheiro» para a abertura do mais recente, num prolongamento das canções de trabalho de mar do primeiro, e pelo facto de a última peça de «Com o Rosto a Este Vento» ter sido, tal como a que dá o nome ao novo trabalho, relativa a um soldado e à guerra. Em «Entre França e Aragão», este 2º CD da autora (cujo título, atrás explicado, dá continuidade à internacio­na­lização da sua pes­quisa etnográfica), está documentada, como se anuncia no “blog”, «a relação entre as músicas folclóricas açorianas e as suas con­géneres do Sul do Brasil (Rio Grande do Sul e Santa Catarina, sobretudo), incluindo dois excelentes exemplos (Ratoeira e Terno de Reis) de temas que, embora de ori­gem açoria­na, segundo estudiosos do folclore bra­sileiro, foram recolhidos nessas regiões.»

É muito interessante notar que a música “principal”, «Donzela Guerreira», não é a primeira; a sua colocação em 5º lugar (nesta 5ª produção discográfica da autora…), aconchegada e salvaguardada do exterior por quatro outras a precederem-na e mais sete que se lhe seguem, faz dela o verdadeiro coração deste CD. E o mesmo se aplica à capa, reprodução de parte dum quadro pintado entre o último trabalho da musicóloga editado à moda dos últimos anos do século XX e o seu primeiro já nas novas tecnologias: a viola, cerne desta identidade musical açoriana, encon­tra-se amorosa­mente protegida pelas mãos e pelo corpo da sua pesquisadora e valori­zadora, e torna-se no rosto visível do coração que por trás dela vive. Tal protecção é tanto mais de salientar quanto o instrumento de eleição de Maria Antónia de Fraga Esteves para interpretar o património musical que estuda não é a viola nem qualquer outro externo a si, mas é a sua própria voz __cujos cambiantes têm mudado quase de disco para disco, mas mantendo sempre um perfeito controlo e equilíbrio entre harmonia e potência, revelador da força interior que lhe tem sido necessária para persistir na missão cultural que para si traçou, como «Donzela Guerreira» que é.

A mudança retratada neste trabalho é, ainda mais do que a de local, a de substituição de um passado agradável por um presente de desolação e saudade, como em «Cabeçal onde me deito», ou de culpa, onde o expoente máximo é «Fado Maria da Luz», ou mesmo de privação e sobrevivência em ambiente tão pouco acolhedor que, como se carpe o moço em «Um Marinheiro», em vez da primeira refeição do dia é servida a ordem de execução dum trabalho tão duro quanto dar alcatrão num navio. Ora não é precisa­mente esta a essência da emigração, e em concreto da que no século XVIII se deu dos Açores para o povoamento e a defesa do Sul do Brasil?... E o carácter penoso do destino não é inerente à própria condição humana desde a sua criação, como se diz no fado (palavra que já de si o significa) «Maria da Luz» («quando Deus criou a rosa/ num paraíso encan­tado/ caiu uma e desfolhou-se/ e assim nasceu o fado»)?...

Existem diversas forças agregadoras das várias componentes deste disco, que adquirem matizes diferentes consoante a ordem por que são ouvidas (experiência que vivamente se recomenda). Entre algumas tocatas há laços de complementaridade meló­dica ou temática; a título de exemplo, atente-se ao que sucede quanto a múltiplas facetas do ser-se mulher. Temos aqui a jovem que, na qualidade de filha determinada e na inexis­tência de outro varão em casa, prescinde tem­porariamente da sua feminilidade para ir substituir o pai e se tornar numa donzela guerrei­ra; e repare-se que, embora o seu primeiro objectivo seja auxiliar o seu velho pai, o segun­do é a vitória, não uma mera presença («quero ir ganhar a guerra entre França e Aragão»). Igualmente decidida, mas neste caso para uma prática destrutiva e condenada, é a «Dona Maria da Luz/ que seu marido matou», situação ainda mais arrepiante pelo facto de se começar por trazer à memória uma «avozinha» humilde e desprotegida… Entre os dois extremos abundam os quoti­dianos mais comuns, também eles dominados pelos afectos: a instabilidade presente em «Lindos Amores» dá lugar à feliz plenitude em «O Meu Bem», mas pode transformar-se, como na «Ratoeira», na dor pela perca do ente amado (que deixou de estar disponível: «na roda já não está/ quem o meu coração que­ria»), dor agravada pela certeza de que «hei-de amar-te até morrer». O sentimento de melancolia amorosa atinge o seu máximo no «Fado da Meia Noite», com uma vivência menos comum: «nem só de alegre se canta, nem só de triste se chora: de alegria chorei já, de tristeza canto agora». Ora sendo este o último trecho do CD «Entre França e Aragão», será abusivo pensar que o próximo trabalho de Maria Antónia de Fraga Esteves talvez se debruce sobre as raízes e os frutos internacionais dos lamentos açorianos de amor?... Venha ou não a ser esta a temática, de certeza que o saborearemos com o mesmo prazer que a sua obra nos tem proporcionado desde 1981!

 

Margarida Sá Nogueira Lalanda

Junho 2014
Na foto: MAE com seus pais (e já a viola...) em Angola, cidade de Carmona (Uíge). 1967.

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