DOS AÇORES AO BRASIL, POR ENTRE FRANÇA E ARAGÃO: VIAGENS DE UMA DONZELA GUERREIRA
DOS
AÇORES AO BRASIL, POR ENTRE FRANÇA E ARAGÃO:
VIAGENS
DE UMA DONZELA GUERREIRA
Pela Profª Drª Margarida Sá Nogueira Lalanda
«Entre França e Aragão» é o 5º título da
produção musical de Maria Antónia de Fraga Esteves. Para bem entender a sua
inserção no projecto como um todo e as razões da escolha de um nome
aparentemente nada açoriano, é importante considerar o percurso desta
estudiosa-cantora e o mundo que nos desvenda via “internet” no seu “blog” (http://mariaantoniaesteves.blogspot.pt/). Aqui se elucida que «foi por diversas
vezes convidada para dar cursos, ou colaborar com cursos em que o folclore
açoriano fosse importante como disciplina», onde «pôde transmitir, a grupos por
vezes bastante grandes de alunos, tanto locais como da diáspora, a sua visão do
folclore musical açoriano e da forma como deve em seu entender ser estudado,
ou seja comparativamente _não só entre ilhas, como também entre ilhas e
continente português, Europa e Américas. Outra importante consequência
foi a transmissão aos jovens da necessidade de serem levadas a
efeito mais recolhas, tendo sido conseguido, por vezes, pôr grupos de
alunos a fazer trabalho de campo.» É, por conseguinte, da pesquisa etnográfica
que resulta a comparação entre textos e músicas diferentes nas proveniências
geográficas mas fruto de vivências e imaginários comuns _e de que, como se lê
neste mesmo libreto, «a história da jovem que vai combater na guerra fazendo-se
passar por homem constitui, com as suas inúmeras variantes, um dos romances
tradicionais mais populares». E eis como a exígua distância real e pirenaica
“entre França e Aragão” foi transformada pelas culturas populares num imenso
contínuo territorial e marítimo ligando a Europa do Sul à América do Sul, e
naturalmente com presença marcante na centralidade atlântica das nove ilhas
dos Açores…
A unidade entre o presente disco e os
que o antecederam é inegável, porque radica na clara explicitação, acima feita,
dos objectivos da sua criadora. O início de todo este projecto de divulgação
pedagógica musical dá-se em 1981, com a publicação de «Açores», um disco em vinil
no formato mais pequeno, 45 rotações por minuto, com acompanhamento de viola (de
seis cordas, entenda-se) e com duas canções recolhidas na ilha das Flores (uma
pelo pai, a outra pelo tio de Maria Antónia): «Tinha
um Rei uma Filha», no lado A, e «Barquinha
Feiticeira», no lado B. Pouco tempo depois, em 1984, o material estudado permite
já a edição de um disco grande, um LP (de 33 rotações por minuto), «Manjericão
da Serra», com dez temas (oito novos, e recuperação dos dois de 1981), tocados
em «viola de seis cordas» e agora também em «viola de arame», ou seja, na denominada
«viola da terra» ou «açoriana». A este propósito regista-se no dito “blog”:
«“Manjericão da Serra” marcou uma mudança na actividade de divulgação de Maria
Antónia Esteves, no sentido de –eventualmente sem deixar de incluir um ou
outro instrumento, quando necessário_ utilizar fundamentalmente e como
instrumento principal a viola regional, o que foi possibilitado pela
excepcional qualidade do tocador Miguel de Braga Pimentel.» Tal entusiasmo é
manifesto quer em pormenores carregados de simbolismo _como na identificação do
autor da fotografia, que «fez a capa por ter compreendido os Açores»_ quer na
tarefa que a musicóloga se impõe doravante: divulgar e valorizar «a viola azorica, tão endémica dos
Açores como é o cedro do mato», e que então se encontra bastante desprezada
localmente. Justamente
por isso, a imagem da capa do seu 3º disco em vinil, formato LP, e publicado
também em cassette audio, em
1988, «Canto do Prisioneiro», merece
de um amigo um comentário em jeito de sub-título: "a viola salva das águas" ou “a
apoteose à viola açoriana”. E a construção da afirmação desta sua
protegida passa igualmente pelo modo de indicar os instrumentos participantes: ela,
a raínha, que não entrara no «Açores» e que no «Manjericão da Serra» era «viola
de arame», apresenta agora o seu nome completo, «viola de arame açoriana»; a
seu lado, pontualmente e com grande dignidade, o rei dos instrumentos de corda,
o violino; e a outra, designada «viola de seis cordas (violão)» em 1984 e, no
primeiro disco, apenas «viola» (por ser a única aí usada), deixa de ter direito
a partilhar com ela esse nome e é identificada exclusivamente como «violão»…
«Canto do Prisioneiro» revela ter um duplo sentido, como a sua criadora tanto
gosta: para além de ser o título dum dos nove temas do disco, todos eles novos,
é claramente a voz da “viola de arame” que finalmente se liberta das muitas
prisões e preconceitos que a tinham agrilhoado até esse momento.
Em 2005 surge o 1º CD de Maria Antónia
de Fraga Esteves, «Com o Rosto a Este Vento» (expressão do cronista Gaspar
Frutuoso para designar o Nordeste, com a qual a folclorista pretende homenagear
a vila micaelense onde reside). O «violão» acompanha aí a «viola da terra»
(expressão tornada corrente entretanto), sem outras cordas: os lugares e os
méritos de ambos já se encontram bem definidos e aceites. Embora nenhum dos
temas do 3º disco seja retomado (ao contrário de vários do 2º e de ambos os do
1º), o espírito marítimo daquele (com especial destaque para «Sou Marinheiro»,
de que foi feito um telefilme, «Rema», e «Nau Catrineta», uma associação
voluntária às comemorações dos cinco séculos de Descobrimentos portugueses)
prolonga-se e desenvolve-se substancialmente neste. Com efeito, para além das
tocatas tradicionais açorianas, o que distingue o CD é a temática do mar e da
baleação, e é, pela primeira vez, a inclusão de canções originárias de outros
países e interpretadas em inglês ou em francês, bem como de peças menos
conhecidas ou com influências africanas e brasileiras. Bem sucedida na missão
de dignificar a viola regional, a musicóloga já pode agora concentrar os seus
esforços na outra dimensão do seu projecto: a comparação com o folclore musical
de outros espaços.
Mar, viagem e mudança são
indissociáveis, e é essa a razão para o surgimento em 2014 da continuação
natural do disco publicado quase dez anos antes. A ligação entre ambos os CDs é
ainda reforçada pela escolha de «Um Marinheiro» para a abertura do mais
recente, num prolongamento das canções de trabalho de mar do primeiro, e pelo
facto de a última peça de «Com o Rosto a Este Vento» ter sido, tal como a que
dá o nome ao novo trabalho, relativa a um soldado e à guerra. Em «Entre França
e Aragão», este 2º CD da autora (cujo título, atrás explicado, dá continuidade à
internacionalização da sua pesquisa etnográfica), está documentada, como se
anuncia no “blog”, «a
relação entre as músicas folclóricas açorianas e as suas congéneres do Sul do
Brasil (Rio Grande do Sul e Santa Catarina, sobretudo), incluindo dois
excelentes exemplos (Ratoeira e Terno de Reis) de temas que, embora de origem
açoriana, segundo estudiosos do folclore brasileiro, foram recolhidos nessas
regiões.»
É muito interessante notar que a música “principal”,
«Donzela Guerreira», não é a primeira; a sua colocação em 5º lugar (nesta 5ª
produção discográfica da autora…), aconchegada e salvaguardada do exterior por
quatro outras a precederem-na e mais sete que se lhe seguem, faz dela o
verdadeiro coração deste CD. E o mesmo se aplica à capa, reprodução de parte dum
quadro pintado entre o último trabalho da musicóloga editado à moda dos últimos
anos do século XX e o seu primeiro já nas novas tecnologias: a viola, cerne
desta identidade musical açoriana, encontra-se amorosamente protegida pelas
mãos e pelo corpo da sua pesquisadora e valorizadora, e torna-se no rosto
visível do coração que por trás dela vive. Tal protecção é tanto mais de
salientar quanto o instrumento de eleição de Maria Antónia de Fraga Esteves
para interpretar o património musical que estuda não é a viola nem qualquer
outro externo a si, mas é a sua própria voz __cujos cambiantes têm mudado quase
de disco para disco, mas mantendo sempre um perfeito controlo e equilíbrio
entre harmonia e potência, revelador da força interior que lhe tem sido
necessária para persistir na missão cultural que para si traçou, como «Donzela
Guerreira» que é.
A mudança retratada neste trabalho é,
ainda mais do que a de local, a de substituição de um passado agradável por um
presente de desolação e saudade, como em «Cabeçal onde me deito», ou de culpa,
onde o expoente máximo é «Fado Maria da Luz», ou mesmo de privação e
sobrevivência em ambiente tão pouco acolhedor que, como se carpe o moço em «Um
Marinheiro», em vez da primeira refeição do dia é servida a ordem de execução
dum trabalho tão duro quanto dar alcatrão num navio. Ora não é precisamente
esta a essência da emigração, e em concreto da que no século XVIII se deu dos
Açores para o povoamento e a defesa do Sul do Brasil?... E o carácter penoso do
destino não é inerente à própria condição humana desde a sua criação, como se
diz no fado (palavra que já de si o significa) «Maria da Luz» («quando Deus
criou a rosa/ num paraíso encantado/ caiu uma e desfolhou-se/ e assim nasceu o
fado»)?...
Existem diversas forças agregadoras das
várias componentes deste disco, que adquirem matizes diferentes consoante a
ordem por que são ouvidas (experiência que vivamente se recomenda). Entre
algumas tocatas há laços de complementaridade melódica ou temática; a título
de exemplo, atente-se ao que sucede quanto a múltiplas facetas do ser-se
mulher. Temos aqui a jovem que, na qualidade de filha determinada e na inexistência
de outro varão em casa, prescinde temporariamente da sua feminilidade para ir
substituir o pai e se tornar numa donzela guerreira; e repare-se que, embora o
seu primeiro objectivo seja auxiliar o seu velho pai, o segundo é a vitória,
não uma mera presença («quero ir ganhar a guerra entre França e Aragão»).
Igualmente decidida, mas neste caso para uma prática destrutiva e condenada, é
a «Dona Maria da Luz/ que seu marido matou», situação ainda mais arrepiante
pelo facto de se começar por trazer à memória uma «avozinha» humilde e
desprotegida… Entre os dois extremos abundam os quotidianos mais comuns, também
eles dominados pelos afectos: a instabilidade presente em «Lindos Amores» dá
lugar à feliz plenitude em «O Meu Bem», mas pode transformar-se, como na
«Ratoeira», na dor pela perca do ente amado (que deixou de estar disponível: «na roda já não está/ quem o meu coração queria»), dor
agravada pela certeza de que «hei-de amar-te até morrer». O sentimento de
melancolia amorosa atinge o seu máximo no «Fado da Meia Noite», com uma
vivência menos comum: «nem só de alegre se
canta, nem só de triste se chora: de alegria chorei já, de tristeza canto agora».
Ora sendo este o último trecho do CD «Entre França e Aragão», será abusivo
pensar que o próximo trabalho de Maria Antónia de Fraga Esteves talvez se
debruce sobre as raízes e os frutos internacionais dos lamentos açorianos de
amor?... Venha ou não a ser esta a temática, de certeza que o saborearemos com
o mesmo prazer que a sua obra nos tem proporcionado desde 1981!
Margarida Sá
Nogueira Lalanda
Junho 2014
Na foto: MAE com seus pais (e já a viola...) em Angola, cidade de Carmona (Uíge). 1967.
0 Comments:
Post a Comment
<< Home