No coração dos Açores
Pe. José Luís de Fraga, em retrato por Victor Câmara.
Com Maria Antónia Fraga no
coração dos Açores
Entre
França e Aragão é nome
mais que belo para um trabalho musical como este que agora é editado com sabor
a fruta madura da voz única e irrepetível de Maria Antónia Fraga. Os Açores
voam mais alto e perdem-se na planura do tempo com estes sons que nos acordam
para a beleza passada que a tecnologia do presente projecta para o futuro.
A voz descanta e encanta.
Miguel Pimentel empresta beleza ao acompanhamento, na sonoridade da viola, com
uma mestria impregnada de classicismo e simplicidade que é quase como que uma
sombra dando relevo à luz.
Donzela
Guerreira é mais do que
a menina da lenda cantada nos Açores e recolhida nos romanceiros populares; é
mais do que menina que se veste de homem para poder participar na guerra, lá
para os confins do século XVI. Donzela
Guerreira é a própria imagem de Maria Antónia Fraga, mulher açoriana
temperada pela ocidental força florense e amadurecida na grandeza destes mundos
africanos, onde viveu e aprendeu a abrir o coração para este lado de cá, ilhas
atlânticas com sonhos de atlântidas…
Ao sol de Luanda sentiu o
sabor da sombra da saudade, viveu os terreiros onde palpitava uma chamarrita do meio, ou sonhava com Meus Amores, dois de manhã e dois à tarde…
Amadureceu e hoje surge
como senhora da música, que não tem medo da palavra folclorista e que se assume
como genuína e destemida intérprete do mais puro que há no folclore açoriano.
Não precisamos sequer de
falar em todos os seus anteriores discos. Um deles, o terceiro que editou,
ainda em vinil, com a etiqueta da Polygram, nos distantes anos oitenta,
tocou-me profundamente porque acompanhei todos os passos da sua edição, por
motivos profissionais. E foi daí que veio esta amizade e este respeito por esta
grande mulher que se chama Maria Antónia e que carrega o nome de um dos nossos
maiores investigadores musicais de sempre, seu tio, o Padre José Luís de Fraga,
cujas recolhas são manancial quase inesgotável para quem quiser conhecer o
folclore açoriano. O Padre Fraga, como carinhosamente o tratava, foi uma das
referências da minha juventude e mais tarde em Maria Antónia, senti como que
uma continuidade de tão importante presença na minha vida.
Poderia dizer isto em
carta escrita, porque há sempre na música açoriana uma carta escrita que não temos por quem mandar. Mas digo-o aqui,
sentindo aquela sensação de quem entra num magnífico pomar e se depara com
árvores carregadas de sumarentos frutos maduros em que mal nos atrevemos a
tocar. Assim é a voz de Maria Antónia Fraga que depois de um longo interregno,
surge, inesperadamente, bela e timbrada, simples como trinado de ave, fresca
como água de ribeira, daquelas que debruam as escarpas da ilha das Flores, mas
ao mesmo tempo segura e sonora, como se o palco da vida a tivesse feito senhora
de muitas viagens e de outras músicas.
Este Entre França e Aragão, contrariamente ao que Maria Antónia diz, não
é um canto de cisne, é uma feliz obrigação de continuar, porque sabe a pouco.
Ouve-se em poucos minutos e ficamos com a sensação que há sempre tanto para
cantar. Há mesmo ocasiões em que apetece não avançar… Retroceder, ouvir de
novo, é talvez o melhor que um artista pode escutar de um trabalho seu. E eu
senti-o e digo-o aqui… O Fado Maria da
Luz, uma magnífica recolha da própria Maria Antónia, em São Jorge, é um
desses casos. Prende-nos a música, e cativa-nos a letra que nos transporta ao
mais íntimo das lembranças: Quando vejo
uma velhinha, com as saias a arrastar, lembra-me a minha mãezinha no seu
modesto trajar.
Já o referi, mas repito.
Os acompanhamentos de Miguel Pimentel, que não precisa de qualquer apresentação
pelo muito que tem dado à divulgação do mais emblemático instrumento musical da
nossa terra, valorizam o trabalho deste disco de uma maneira quase sublime,
essencialmente pelo equilíbrio e pela força que conferem à palavra cantada,
como se fosse um diálogo de tempo e de modo, que se repete em ecos
inesquecíveis e duradouros.
Maria Antónia Fraga é
professora, toda a vida… Como ela própria se classifica, reformada pela graça de Deus, continua a ensinar e melhor do que
tudo, continua a ter alunos. Os ensinamentos que colherão todos aqueles que
lerem a brochura que acompanha este trabalho musical são disto prova concreta.
O folclore, de qualquer lugar e de qualquer época é um dos maiores compêndios
de história e cultura sobre um povo.
Nos Açores não fugimos à
regra. Pena é que muitas vezes a tentação das adaptações para exibição tire a
genuinidade e estrague a beleza original das canções. Em Maria Antónia Fraga
nota-se esta preocupação de “regresso às origens”, com a convicção de que a
água da nascente é sempre a mais pura e cristalina.
A música e o folclore dos
Açores ficam mais ricos com este trabalho, mas cresce a dívida de gratidão por
tudo quanto a cantora tem feito por estas ilhas, desde que aqui regressou, nos
anos setenta, logo após a revolução dos Cravos, quando muito era preciso
reconstruir e preservar.
Entre
França e Aragão é o
coroar de uma carreira, mas é acima de tudo o testemunho de que há valores e
entusiasmos que ultrapassam o tempo.
Merece ser ouvido e acima
de tudo divulgado, porque a ilha sente-se mesmo que a nossa casa seja a única
no deserto de todas as ausências. Com o carinho do cabeçal onde me deito e sinto que tanta falta me têm feito os mimos de
minha mãe, porque, como no Fado da Meia Noite… nem só de alegre se canta, nem só de triste se chora.
Descobrir cada uma destas
frases, entrar com elas na alma do tempo e trazê-las junto ao peito, é motivo
mais que suficiente para esta palavra de gratidão a Maria Antónia Fraga, com
Miguel Pimentel e todos os que fizeram este disco. Obrigado… e bom passeio
musical Entre França e Aragão, no
coração dos Açores!
Santos Narciso
Jornalista
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